Aos sábados de manhã de vez em quando acordo com o batuque dos oprimidos nas prateleiras mais escondidas do meu quarto. Um bater leve mas persistente. O cárcere fá-los pensar nas agruras e o pensamento fere-lhes a consciência. Nem as bolas de naftalina adormecem aquela desordem que para ali vai...parecem índios, uivam até que os deuses se apercebam da sua existência e lhes mandem com desprezo uma hóstia. Vivem cobertos de mofo na sombra de um pretérito perfeito, têm cheiro a coisa guardada e têm muita intensidade concentrada. São coxos mas rijos, pior que sindicalistas indignados num dia curto de Inverno. Pois muito bem, está na altura de irem à escola.
Abro a prateleira e levo-os até à sala, abro a janela e coloco-os com disciplina estendidos e direitinhos na corda da libertação. A mola aperta-lhes e língua e a má criação enquanto batem com ardor no vidro da varanda com gritos contestatários ébrios pela luz. O sol beija-lhes as bochechas caminhando pelas veias até alongar a curva plissada das almas definhadas. O oxigénio faz-lhes respiração "coração a coração", o escorbuto no sorriso lívido esvanece, tal como a cor férrea das feridas que vai subindo subindo devagarinho com o ar, ascendendo levemente até desaparecer numa brisa perdida. As chagas supuradas encolhem e tudo ganha uma forma branda. Cheiram-se, abismam-se e curam-se nas vertigens espelhadas dos próprios sentimentos.
Faço assim o meu estendal maculado de roupa suja de sentimentos com mofo que vai ganhando candidez aos pucos. Os ponteiros do relógio do sol são eficazes, sacodem a minha manta de retalhos com tanta veemência que fazem dela uma vela indomável. E o mofo vai assim saindo aos olhares indiscretos dos meus vizinhos.Prefiro a vergonha lavada.
No final do dia quando tudo esta mais calmo adornado com brandura de um crepúsculo com sabor a espuma de um mar cansado, abro a varanda. Coloco os meus dedos sobre a textura agora homogénea , dobro com cuidado e de forma assimétrica. Volto a repassar os dedos de forma a vincar as bordas e, guardo-os numa prateleira em forma de alcova preenchida. Agora mais civilizados e já sem remos, já há mais paz no meu armário e no meu coração.
Regina Azevedo Pinto
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