Quem me sabe, é ciente de que eu estou para a minha casa como um smartphone para o carregador. Nunca soube ser nómada e inquieta-me quando me afasto além do que considero ser plausível, e é pouco, das minhas construções diárias que comigo partilharam os anos que para trás ficam.
Ainda era quarta-feira quando me despedi do meu templo sagrado e me enderecei até à terra que me viu crescer para celebrar a família e o tanto que caminhámos para chegarmos até aqui, juntos e sem caixotes no sótão. Contemplei o crescimento dos meus sobrinhos, empertiguei-me com as traquinices e embeveci-me por perceber que a minha irmã se tornara uma Mãe leoa, tantas vezes filha raposa, tanto ou mais condescendente do que a nossa fora conosco. O amor bom muda tudo! O meu sobrinho tem aquela chama invisível que não se encontra na maioria dos seres humanos. Um fogo selvagem nos olhos de quem quer engolir a vida toda de uma vez só. Às vezes lembra-me de quem já fui. A minha sobrinha está uma senhora ponderada e assustadoramente madura. Pergunto-me se sentirá a tristeza da mesma forma inquisidora que eu e se também guardará os seus verdadeiros pensamentos para si, por lhe parecerem demasiado complexos para a sua idade, como eu tantas vezes fiz. Foi tão bom sabermo-nos cada vez melhor. Tolerarmos as diferenças e sublinharmos o amor que nos enleia numa história feita de trambolhões, julgamentos e redenção.
Revi um amigo de infância que me fez recordar que não precisamos de nos ver todos os dias para crermos que estaremos para sempre lá, partilhando o mesmo abraço, o mesmo cinzeiro, o mesmo campeonato e o mesmo sorriso maroto no olhar. Por outro lado, esclareci alguém que já teve essa importância e se personificou no oposto desta premissa. Nada permanece, imponente e intocável, se desistirmos de nutrir os laços e de nos lembrarmos de que há amor além do silêncio. Acaba por ser sempre parte desta corrida. Uns vão ultrapassando velozes, outros perdem-se no horizonte que ilustra a retaguarda e os melhores acompanham o nosso passo, ainda que noutras estradas.
No dia de quinta festejámos o aniversário do meu Pai. Percebi que o sei amar melhor, desculpando tantas das imperfeições que lhe julgo, talvez por inconscientemente lhe culpar os genes pelas minhas. Sempre houve um fosso que se agigantou, não através das nossas diferenças, mas das nossas semelhanças. Hoje, já consigo duvidar das minhas certezas acutilantes e tentar procurar a raiz dos seus modos. Sinto-me também capaz de ensinar, tal como aprendi. Talvez o tempo nos tenha começado a nivelar e isso nos permita encontrar em qualquer adjacência destas duas linhas até então paralelas.
Regressei a casa e dormi sereno e em graça. Por momentos senti essa paz que acreditei ser conquistável durante a minha infância.
O dia de sexta foi de ansiedade e expectativa. Já não sinto a mesma segurança que sentia em relação ao acolhimento das pessoas à minha obra. Talvez porque tenha tantas mais responsabilidades a meu cargo do que outrora, talvez porque me entregue e espere tão mais de mim na idade adulta, talvez porque agora perceba tudo o que é necessário para se chegar às metas que me impus. Comecei por ir à televisão, onde me encontrei com um persistente e determinado colega de profissão que comigo trilha este árduo caminho no país do desgoverno intelectual e artístico. Sem qualquer ensaio prévio, arriscámo-nos a recriar um dos temas que marcou o meu crescimento e que creio fazer-me sentido até ao dia em que feche os olhos pela universalidade da sua mensagem: Everybody Hurts dos REM. Ainda não tive oportunidade de ver o serviço que fizemos, mas creio que ficaremos orgulhosos. Daí, segui directo para o local da actuação que sucederia essa noite, encontrando à minha espera simpáticos representantes de uma marca de roupa que me queria, sem pedir o que quer que seja em retorno, oferecer algumas das suas peças. Talvez vos pareça provinciano que confesse que me sinto sempre lisonjeado e embaraçado quando aceito estas oferendas. Primeiro, porque gosto de poder ter dinheiro para comprar o que ambiciono adquirir e porque depois tenho sempre medo de não honrar o facto de em mim terem depositado essa expectativa. Talvez seja eu que não me valorizo a mim, ou ao meu trabalho, através dessas benesses ou a minha falta de fé que as pessoas façam as coisas só porque lhes apetece ser agradáveis ou porque sintam genuinamente que eu sou merecedor delas e não apenas mais uma cara conhecida que vai meter uma fotografia nas redes sociais a promover as suas mercadorias.
Pelo caminho, houve as desistências dos "amigos" do costume, com as desculpas de sempre, mas também a presença de todas aquelas pessoas que abismalmente nunca falham aos momentos de música que proporciono. Talvez seja esse o sentido da palavra "fã". O que paga para te ver, para que tu o distraias, o que sente e disseca as tuas musicas e as tuas palavras, não fazendo a mínima ideia se serás uma besta ou não mas encantado que chegue pela tua obra para te permitir continuar a fazê-la.
O meu colega de profissão do programa da tarde estava na audiência. Fiquei lisonjeado porque foi inesperado e não costuma acontecer no nosso país. Não me disse nada. Pagou bilhete e foi. E esteve na fila da frente. Senti-me respeitado e grato. Às vezes faz falta. No final cheguei a um solitário quarto de hotel onde repensei todo este processo que nos acompanha para que sejamos humanos e máquinas ao mesmo tempo. Mandei vir uma lasanha para o quarto e pensei "Que se lixe o preço. Eu mereço!"
Naquele momento pagar muito para comer pouco deu-me prazer e fez-me sentir um adulto capaz de aguentar as vicissitudes da contemporaneidade. "Ena José, andas a começar a saber lidar com a instabilidade do barco. Lá vais conseguindo cruzar o mar e até já encontras paz no silêncio que sempre repudiaste. Talvez já saibas ficar apenas na tua companhia sem te começares a odiar e a combater sem sentido."
No dia seguinte, acordei para me reunir com dois estranhos que por gentileza me quiseram vir apresentar o seu projecto solidário. Eram ambos jovens, atipicamente bonitos, eloquentes no discurso, ricos na temática, despretensiosos no trato...comecei o dia a ganhar mais esperança na minha geração. Talvez se sintam estranhos como eu. Continuo a crer que a nossa estranheza é de se adoptar e propagar, perdoem a presunção. As ideias fluíram e dali ficou uma mensagem de esperança para o futuro das nossas interacções.
A tarde e a noite foram aborrecidas. Os bastidores da moda apresentam um ritmo exageradamente frenético para as funções a desempenhar, as pessoas levam-se demasiado a sério e crêem que a arrogância atribui maior crédito à sua posição, os manequins oscilam entre a beleza de quem na sua timidez se refugia num canto a ouvir música ou a ler e o exibicionismo de quem ali está por vaidade, narcisismo e sem qualquer sentido de missão. Os técnicos acabam por ser sempre o melhor trato que dali podemos levar. Quem me convidou tratou-me com a simpatia e respeito possível para quem tem tanto para fazer sem maiores ajudas e eu creio ter feito o meu melhor. Desta vez gostei da fotografia, odiaria não ter gostado. Já aconteceu. E depois tive o privilégio de sair de lá com umas calças que saltaram da passarelle directamente para os meus cotos. Desculpem lá, mas aí sinto-me um bocadinho importante.
Ontem vim finalmente para Aveiro onde fiquei a conhecer o responsável pelas misturas do meu disco, para além de um ecrã ou de uma escuta telefónica. Na realidade, a simpatia do sorriso e o encanto do espaço de trabalho que me foram apresentados, nos arredores da cidade, iam de encontro à voz brincalhona e desengonçada com quem tenho trocado ideias no últimos tempos. Recebi uma convidada de última hora com quem já equacionava partilhar uma música e isso acabou por elevar um tema que já não era suposto integrar o alinhamento do disco a um nível claramente inesperado. Fiquei a vê-la gravar com um enorme sentimento de injustiça e lamento em relação às oportunidade (in)existentes no nosso país e à forma como erroneamente são distribuídas.
Talvez o talento seja mesmo o anzol que me prende a alguma eficácia em termos de resultados. Exponho-me demasiado e protejo pouco os meus defeitos para que melhor me integre no esquema laboral destas áreas. Não sei lamber cus nem alimentar conversas de circunstância. Não vou aos sítios certos nem me aproximo de quem quer que seja antevendo os ganhos ou benefícios que daí poderei obter. Não me coíbo de partilhar a minha verdade mesmo sabendo que a estou a oferecer ao julgamento e que isso me torna uma presa apetecível para os caçadores de padrões do correcto.
Lá continuava ela a cantar e em mim fervilha a ideia de começar a desafiar-me a passar a experiência que adquiri nestes parcos 27 anos de vida. Apetece-me ajudar a criar uma estrela onde há centelha. Apetece-me ser para alguém o que o caminho já foi para mim. Direccionar, investir e incentivar. Oferecer ferramentas para que essa pessoa, que desconhece tudo o que esta merda de profissão acarreta, cresça e possa viver o seu sonho sem cometer os erros que eu necessariamente tive que cometer para analisar as coisas de uma perspectiva mais ampla.
Por vezes o processo é desgastante e passamos por alturas em que só queremos encerrar as obras como se de assuntos incómodos se tratassem. Estes dois dias fizeram-me apaixonar outra vez por cada queda dada para que aqui chegássemos. Houve cansaço, muita resmunguice, o peso de uma mala enorme que viajou uma catrefada de quilómetros, a opressão de tempos mortos em locais onde me sinto desadequado mas no final de tudo há uma enorme satisfação e alívio. Eu corro que me farto, desgraço os pés, a voz e os ideais com dúvidas e medos mas acabo por chegar sempre além do que a meta me fazia crer ser possível. Sinto que o retrocesso imediato pode levar a prolongamentos entusiasmantes, justificando assim que o mal necessário seja um gajo a ter em conta porque talvez origine a semente de um amanhã mais feliz.
É do comboio que vos escrevo, com uma sandes de frango e bacon de qualidade duvidosa e preço absurdo nas mãos. Obviamente que vou em classe económica, que não estou para desperdiçar as minhas misérias em pequenas diferenças que não se irão reflectir na forma como me sinto e encaro o regresso. Já estive bem mais exausto destes dias, destes trajectos e da vida do que hoje. Quero abraçar os meus cães, chegar a casa e ouvir outra e muitas vezes o que fizemos. Pode ser da minha cabeça ou da minha falta de noção, da minha vaidade ou da minha necessidade de me sentir "fierce", mas o resultado disto tudo está melhor do que pude crer. Quase como se as minhas ideias tivessem sido devidamente "photoshopadas" e eu e o meu mundo já não fossemos só uma daquelas selfies ranhosas ao acordar.
Quero muito deitar-me na minha cama, sentir o calor de quem me atura e ser completamente e absolutamente lambuzado pelos meus animais.
Da maior ausência de forças pode surgir a maior fibra.
Chama-se a isso a sempre desejável e gloriosa sensação de missão cumprida.
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