Feliz na ilha



Hoje, os olhos entreabriram-se pela madrugada, sendo a penumbra um visitante inesperado que nos pode oferendar regalos inimaginados. Acariciei a coberta da cama, entrelacei os dedos na pata do meu mais novo e tentei regressar ao espectro dos sonhos literais, mas não me foi possível virar costas à claridade matinal e desistir mais uma vez de começar o dia à hora que ambiciono e creio ser certa. 

Mexi ovos e dei umas trincas numa banana e numa pêra, quis ser mais veloz e dei uma hipótese ao corpo de contrariar a mente. A folga justificava que me entregasse ao exterior e que o deixasse provar-me valer a pena partilhá-lo com os demais fantasmas que por aí deambulam em busca de um lugar ao sol. 

Já o cais se avistava e eu divorciava-me da marcha para namoriscar a corrida. Ia parando de quando em vez para alternar quem aos ouvidos me entoava cânticos que já esquecera e contemplar a arte urbana que me implorava para ficar registada no meu diário virtual. 

Sorri para comigo e tentei convencer-me de que esta seria uma boa rotina para o que me exijo ser amanhã. Quando dei por mim já a ponte se erguia sobre mim e pela face emergiam casais de lágrimas e gotas de suor que exultavam a dança consequente de um dia mais feliz. 

Já o noticiário da uma devia estar a dar e eu permanecia em fotossíntese pelo padrão dos descobrimentos onde me instiguei a comer sopa às colheres e a beber água de forma despropositada. O meu gémeo de ontem sussurrava-me que não valia a pena ser tão drástico e lá me levara a investir as moedas que me sobravam na carteira num maço de tabaco . Sim, fumei e foi quase sublime. 

Como se o bem e o mal pudessem flirtar de forma estrategicamente ética e eu pudesse assistir a todo o espectáculo de camarote. 

No regresso achei que devia deitar-me em todas as superfícies que me parecessem convidativas e fi-lo por diversas vezes sem que o relógio me importunasse. 

Cheirei o rio como se de um assassino me tratasse, apreciando o sal e a brisa aquosa enquanto me permitia isolar o azedo de uma podridão que só por nós, ilustríssimos humanoides, poderia ser germinada. 

A música entrelaçava-se, alto e velozmente, num espírito escancarado aos sentidos do tempo e do espaço. O berço da vida na cidade e eu, poeta vadio, a contemplar o privilégio que é existir no meio de tudo, permitindo-me a sentir mais do que nada. 

As pernas não se incomodaram de esfriar e da última vez que me sentei demasiado perto da beira rio, a maré subiu e o manifesto das águas banhou todos os meus pertences e uns pés cansados que se abrigaram numa pequena ilha de betão. Sorri e fiquei com vontade de repetir tudo outra vez. 

A rotina não me assusta. Quando é boa e eu ainda a sei apreciar. 

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