Uma questão de prisma
Quando aterrei pela primeira vez no Kuwait (estreia também no médio oriente), o cenário foi de um filme a preto e branco com fundo sépia. As mulheres vestidas de preto, com burcas que anulam as formas e expressão corporal, e os homens vestidos de branco, vaidosos e com expressão de orgulho e poder. O céu tinha a cor da areia, e o mar o reflexo do céu. Tratava-se do fim do verão, temperaturas suportáveis que rondavam os 30º C e um ar ainda irrespirável, devido ao pó que se foi acumulando ao longo do verão. Estávamos em Outubro e eu ia ficar apenas 4 dias. Confesso que foi o maior choque cultural que já senti e desta vez não o estava a sentir de forma positiva. Saía de casa a pé para passear e passado 10 minutos estava a voltar para casa. A cidade ignora os peões. Não há passadeiras e as estradas são bastantes largas. Os carros dominam a cidade. Socialmente, as mulheres olhavam-me de forma corrosiva, parecendo que eu não era bem vinda, e os homens abordavam-me e perseguiam-me discretamente por entre corredores de supermercado. Estava sem duvida a ter algumas dificuldades em me colocar naquela realidade. Voltei para Portugal com a sensação de derrota.
Um mês depois voltei por razões que só o amor consegue explicar e ali estava eu de novo. Desta vez por mais de duas semanas, preparada para conviver e perceber esta sociedade.
Os contrastes multiplicaram-se.Todos os conceitos , filosofia de vida e teorias da Tetembwa estavam à prova. Foi como ter de trabalhar na área de psicologia tendo estudado engenharia. A tendência foi começar a aplicar a matemática e física tida como certeza universal. Os resultados começam a dar errado. Quando chego a uma praia publica e vejo que todos estão vestidos até aos pés percebo que não posso simplesmente chegar de calções e toalha ao ombro pronta a dar um mergulho de biquíni como se estivesse na costa da Caparica. Sim, é suposto apenas contemplar o mar e pensar como seria bom senti-lo na pele.
Não ficamos por aqui quando falamos do binário desejo-proibição. Este estende-se à troca de qualquer tipo de carinho público entre homem e mulher. O instinto de abraçar o nosso namorado ou dar-lhe um beijo publicamente é PROIBIDO. Quando comecei por dizer que a minha natureza africana estava à prova, não estava a exagerar.
Continuando na luta, temos de abafar aquele bife suculento que grita por um bom vinho tinto. Não é permitido qualquer tipo de álcool. Nem mesmo com o argumento que beber um copo de vinho é extremamente saudável e equivale a uma hora de corrida. Terás mesmo que ir ao ginásio. E não falo de um bife qualquer. Sendo o único prazer social que esta sociedade pratica, uma vez que não há bares ou discotecas, os restaurantes são excelentes. Há dinheiro por isso investe-se o que for preciso. Venham os peixes vivos diretamente do Japão para comermos o melhor sushi do Mundo.
Numa sociedade em que as minhas fórmulas matemáticas estão a dar erro, a psicologia começa a ser fácil de aplicar. Patologia crónica – A Hipocrisia. Tudo o que se proíbe faz-se às escondidas. Simples. Venham as festas privadas em chalés, barcos ou rooftops.
O Kuwait conquistou a independência do Reino Unido em 1961, e a sua fronteira a norte com o Iraque foi meticulosamente desenhada pelos britânicos de forma a fechar as portas do Iraque para o mar. A sul encontra-se a Arábia Saudita, país bastante extremista.
Desde a invasão do Iraque os Americanos protegem este país que é atualmente extremamente seguro, não se sentindo qualquer perigo em viver lá.
Governado por um Xeque, cargo hereditário, o kuwait é uma monarquia constitucional. A sociedade é estratificada (os Kuwaitiis classificam-se de primeira, segunda e terceira classe), e as mulheres não são livres. Quando deixam de pedir autorização ao pai ou irmão, passam a depender das ordens do marido.
Multiplicando-se as questões que iam surgindo na minha cabeça na tentativa de entender todo este novo conteúdo, surge a questão do ouro negro. Sendo o Kuwait o país do Golfo Pérsico com mais petróleoe um dos menores países do mundo em termos de área territorial, dinheiro não é problema. Então porque não tem mais infraestruturas e uma metrópole como o Dubai? A resposta surge na patologia “orgulho de ser Kuwaitii”. Nascer no Kuwait tem muitas regalias. O petróleo paga os estudos, maioritariamente nos Estados Unidos, e uma boa casa assim que se celebra o matrimónio. A mão de obra é muito barata, proveniente da emigração da índia, Líbia, Egito, sendo usual terem um motorista, jardineiro, cozinheiro, amas e tudo o que requer um pouco de esforço e trabalho. A sociedade é preguiçosa, não deixando de ser orgulhosa. Não fazem, mas também não se sentem confortáveis em deixar fazer quem sabe, se for estrangeiro.
Curiosamente é na psicologia que acabo por conseguir aplicar uma fórmula matemática. Uma sociedade que apesar de ter tudo censurado, desde filmes, revistas ou mesmo o correio, os kuwaitiis viajam e estudam fora, conhecendo outras realidades. Isso somado ao conformismo da vida fácil que têm no seu pais resulta numa luta interior terrível.
São muitas as questões que nos colocamos quando nos deparamos com uma sociedade oprimida, estratificada e com uma pseudo-escravatura, na medida em que os patrões são “donos” dos estrangeiros que trabalham para eles. Uma sociedade sem manifestações de amor e onde não se vêm sorrisos femininos na rua, é uma prova difícil que se supera com compreensão e aceitação. Acima de tudo somos todos seres humanos e há sempre o lado positivo em tudo. Basta olhar pelo prisma certo. Eu ainda estou na busca desse ângulo.
Joana Mateus
0 comments :
Enviar um comentário