Lisboa não sejas francesa


que é feito de ti lisboa? que é das noites tristes e caladas, das auroras desnudas, do tempo que por nós passava devagar? pintaste o cabelo, fugiste de casa e deixaste-me só, calcorreando o mundo nuns sapatos altos grandes demais, baratos e vulgares como o batom desalinhado que te cobre os lábios na esperança vã de que te cubra as falhas não vá descobrirem-te como és: pequenina, provinciana, pateta, tosca, não vá descobrirem como gostavas era do tempo em que o tempo passava devagar, enquanto te abandonavas lânguida à espuma dos dias, torcendo para que o ontem sobrasse para hoje. que é feito de ti e das mulheres e homens com quem te deitas, o que é que lhes dizes numa língua que não compreendem, de que é que te ris com os dentes manchados de sangue? onde julgas que vais lisboa, menina cidade casa, por quem trocas os doidos, os velhos, os poetas, os miseráveis, por quem me trocas a mim que já não te entendo (eu que te percebia tão bem), porque trocas a saudade pela vidinha, pela correria, pelo souvenir, ruas cheias de gente que olha para ti e não te vê por debaixo das manhas em que te escondes (lisboa não sejas francesa), um cosmopolitismo de trazer por casa (o batom ainda a sujar-te os dentes), porque é que desinfectas o amor que dantes me sufocava, amordaçava, o amor que me matava e me deixava respirar, me afastava na certeza de que nunca estaria menos próxima de ti, porque é que lavas a mágoa e a vendes a preço de saldo, porque é que não devolves os cruzeiros e trazes de volta as caravelas? porque é que não despachas o progresso no expresso da meia-noite e porque é que não morremos na praia, entre as gaivotas e os cancros do Tejo, afundadas nas promessas mentirosas de que o amanhã não vai chegar?



Regina Nogueira

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